A crise do estado brasileiro é de transição

A crise institucional, ocasionada pelas manifestações em massa nas ruas e praças brasileiras, não é uma crise isolada. Presenciamos ondas de manifestações similares em todo o mundo, ocasionando crises em graus variados na estrutura de governança dos países atingidos.

Movimentos de revolta popular, como o que presenciamos no Brasil, são chamados de “Primaveras”,  por estar o termo relacionado aos fatos ocorridos em Budapest – na Hungria, em 1953 e em Praga – na antiga Tchecoslováquia, no ano de 1968, quando os regimes comunistas submetidos à União Soviética buscaram dar fôlego a manifestações democráticas e populares, durante as primaveras, sendo esmagados pelo Pacto de Varsóvia, no outono e inverno seguintes.

Dessa forma já ocorreram a “Primavera Árabe”, a “Primavera Turca” e, portanto, não é errado dar o nome de Primavera Brasileira ao que ora ocorre no Brasil, independentemente do fato ocorrer na estação outonal…

Já derrubado o Muro de Berlin e ultrapassadas barreiras ideológicas que conferiam falso glamour aos ditadores populistas – vários deles recém derrubados em “primaveras” mais sangrentas mundo afora, o fato é que “nossa” primavera expõe a crise decorrente do longo e complexo período de transição.

De fato, estamos presenciando a transição do tradicional Estado Nacional, republicano e democrático, baseado no regime representativo, cameral, constituído por poderes independentes (legislativo, executivo e judiciário), cartorial e burocratizado, para um novo Estado Nacional, republicano e democrático, porém baseado em um novo regime participativo, mais dinâmico e consentâneo com a realidade tecnológica e interativa vivida hoje por nossa civilização. Um Estado globalmente articulado e focado num ambiente de regulação, de controle social sobre serviços, poderes e  bens.

A revolta observada nas ruas, é bom lembrar, teve seu estopim na reação popular á violência policial, transmitida “on line” pela mídia, reproduzida e testemunhada nas redes sociais e meios de comunicação virtuais,. A repressão policial fez tábula rasa de “baderneiros e manifestantes”, feriu os brios da população e pode ser atribuída à miopia, à postura arrogante,    despreparada e insensível, da máquina administrativa do País,  máquina que não consegue mais atender minimamente às demandas por segurança, saúde, educação, transporte  e justiça. Sem o atendimento a essas demandas, o Estado não se justifica.

O choque tecnológico, por sua vez,  foi evidenciado pela mobilização virtual, concretizada nas ruas, mas articulada e convocada pelas redes sociais, pela internet, pela mídia alternativa, percebida e recebida por tablets, telefones celulares, lap tops, etc.

Num mundo em que  o número de dispositivos digitais interconectados já suplantou o número de habitantes do planeta, censurar ou controlar  oficialmente jornais de papel e canais de televisão em rede aberta soa uma piada…

Com a virtualização da democracia, as estruturas de poder vigentes, configuram-se obsoletas em todos os aspectos.

A raiz da questão,  todavia, está na crise de participação popular, decididamente não mais atendida pela estrutura hoje em vigor no Estado Brasileiro.

A geração dos interesses difusos

Participação é conceituada e definida por um Princípio pactuado pelas Nações Unidas na Conferência do Rio de Janeiro, de 1992, inserido como parâmetro internacional do moderno Direito Ambiental. O Princípio da Participação constitui critério político por meio do qual o Poder Público dos Estados Nacionais pode, ao aplicá-lo legitimar sua tutela dos interesses e direitos difusos.

Interesses difusos são intrinsecamente conflituosos. Nunca haverá unanimidade para a resolução dos conflitos de natureza difusa. Assim, a motivação do ato da autoridade e a legitimação obtida no processo de resolução do conflito, constituem requisitos essenciais para a validade da decisão adotada pelo Poder Público.

Face ao conflito intrínseco ao interesse tutelado, é de se esperar,  sempre,  que descontentes se manifestem, seja acorrendo às ruas, seja buscando a  judicialização do descontentamento.

Interesses e direitos difusos são transindividuais, possuem natureza indivisível, e abrangem objetos cuja titularidade é indeterminada, gerada por razões de fato.

No Brasil, esses direitos encontram-se conceitualmente definidos no inciso de um parágrafo de um artigo do  Código de Defesa do Consumidor (art. 81, Parágrafo único, I, da Lei 8.078/90). Como se o interesse do legislador fosse…deixá-los quietinhos num canto qualquer do nosso ordenamento jurídico…

O conflituoso rol de interesses e direitos de natureza difusa, no entanto, é colorido pela tintura das demandas civis que essa geração de direitos da era moderna visa atender: a proteção das minorias, as demandas por autonomia, a inclusão social dos politicamente hipossuficientes, a qualidade de vida para a população e o equilíbrio ambiental.

O mestre Gofredo da Silva Telles, professor emérito da Universidade de São Paulo, já falecido, lecionava que “onde há fracos e fortes, a liberdade escraviza, o direito liberta”. Ora, a liberdade que se busca na tutela de interesses difusos, é vinculada ao conflito cuja medida do interesse em causa não é mensurada pela “quantidade de interessados”, mas pela qualidade da participação. Algo novo e ainda muito complexo para ser facilmente compreendido por governantes, operadores do direito, gestores públicos e privados, quando não pelos próprios interessados beneficiados pela tutela…

A participação, no entanto, é a pedra de toque para o atendimento à demandas de natureza difusa. A participação envolve transformação política e impõe mudanças estruturais no tradicional regime democrático representativo em que vivemos. Justamente por isso, repita-se, dá-se a crise de legitimidade que explode nas ruas, mundo afora e no Brasil.

Demandas por autonomia, inclusão social e qualidade de vida podem ser identificadas na intervenção  das forças de segurança do Estado nas favelas do  Rio de Janeiro, na introdução de um “bunker” imobiliário num bairro tradicional consolidado na cidade de São Paulo, na implantação de uma usina hidrelétrica  em área de interesse dos índios, no estabelecimento de normas teocráticas  no sistema político laico da Turquia, no conflito palestino-israelense na faixa de gaza, na afirmação nacional do Curdistão face ao estado Iraquiano, na legalização do casamento entre homossexuais ou, então, na busca pela “cura gay” pretendida por parlamentares religiosos no parlamento brasileiro.

Várias dessas demandas se desenvolvem num banho de sangue. Outras, são atendidas de forma pacífica. Todas, no entanto, permanecerão intrinsecamente conflituosas, ainda que momentaneamente “pacificadas”.

O princípio da participação

A Organização das Nações Unidas, ao tratar da questão ambiental como um interesse difuso, entendeu que não poderia a moderna administração pública pretender tutelá-la sem a participação sistemática e obrigatória da comunidade interessada no processo de decisão.

Foi então que, em 1992, todos os mais de cem países que compareceram à Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, firmaram a Carta de Princípios (ratificada em 2012) cujo princípio 10 constitui um verdadeiro manifesto em prol do pluralismo, da inclusão e da participação democrática, transcendendo em muito a questão meramente ambiental. Reza o Princípio 10:

“A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos.”

Com efeito, seja nas estruturas públicas de gestão, seja na implantação de investimentos privados, a interferência da coletividade há de provocar mudanças consideráveis no resultado de projetos de impacto ambiental,  social, bem como nos rumos de políticas públicas.

Não mais pode o administrador decidir sozinho, e a solidão pode significar a rejeição do empreendimento ou da política proposta, quando não do próprio administrador.

A tutela pública de interesses difusos, aliada aos avanços tecnológicos nos meios de informação, transformou o cidadão comum, de observador passivo, de mero destinatário resignado de produtos e serviços, a um agente crítico, uma espécie de sócio palpiteiro dos empreendimentos ou políticas que lhe são afetos, direta ou indiretamente, que não hesita em buscar no Judiciário ou na mídia o reconhecimento de seus interesses, quando não as ruas como meio de manifestar o seu inconformismo.

Os governos democráticos, nos últimos quarenta anos,  face à crescente demanda por participação popular, procuraram aparelhar-se, instituindo  conselhos (comunitários, ambientais, etc.),  audiências públicas, organismos reguladores vinculados a deliberação colegiada, pesquisas de opinião dirigidas, mecanismos  de acesso rápido à justiça, ouvidorias administrativas, reuniões periódicas com representantes da sociedade civil organizada, etc.  No entanto, esses instrumentos, difundidos no executivo, no legislativo e  até no judiciário,  não só recebem tratamento de mecanismos paliativos, como, pouco a pouco, retiram nitidez dos limites de esfera desses poderes constituídos, chegando mesmo a confundi-los.

Os poderes e formas representativas de gestão republicana,  de fato, estão se afogando num mar de interesses difusos, atormentado por ondas  de informações transmitidas em rede e por correntes de participação popular  demandada para a resolução dos conflitos.

Não mais basta  gerir mecanismos jurídicos de primeira geração (garantias individuais e proteção dos contratos) e de segunda geração (direitos coletivos massificados, instrumentos tradicionais de soberania popular), parar resolver conflitos complexos como os de natureza difusa.

No Brasil

O Princípio da Participação, no Brasil, vem sendo parcialmente implementado, com a introdução de mecanismos de gestão cooperada em vários entes federados. Há um imperativo constitucional, um  dever-poder conjunto Poder Público e  Coletividade (Estado e Sociedade), que em tese deveria propiciar participação dos diferentes grupos e segmentos interessados na formulação e execução de políticas ambientais, culturais e sociais.

Essa participação, no entanto, pressupõe o direito à informação.

Ocorre que a informação, no Poder Público brasileiro, é algo opaco, mesmo nos organismos que deveriam zelar pela transparência.

O acesso à informação confere melhores condições de interação social, de mobilização eficaz para atender desejos, gerar idéias e fazer parte ativa nas decisões de assuntos que lhe interessem e afetem diretamente as pessoas.

No entanto, burocracias cegas, surdas, incompetentes e arrogantes, instaladas nos mais variados setores da vida nacional, um ministério público bem intencionado tanto quanto arbitrário, atrabiliário e voluntarista, um judiciário “olímpico” quando não contaminado pelo “ativismo”, parlamentos lamentáveis, em todos os sentidos e mandatários idem –  “postes” postados no executivo, suportados por uma estrutura partidária fisiológica, não conseguem compreender a natureza difusa dos conflitos modernos. Tornam-se, eles próprios,  hipossuficientes na aplicação do princípio da participação para a gestão diuturna desses conflitos e, portanto, incapazes de articular minimamente os instrumentos,  já dispostos esparsamente em nossa legislação.

A estrutura política e institucional brasileira, como de resto em grande parte do mundo, não compreende a  imediata necessidade de retirar os instrumentos de participação, do rol de medidas paliativas, acessórias, na estrutura administrativa do Estado, para erigi-los, numa profunda reforma política, a elementos estruturais de uma nova república participativa e interativa.

O choque tecnológico entre o que se articula nas vias digitais e se espraia pelas ruas, e  o que se ostenta no mofo dos nossos emprumados parlamentos e  tribunais, no limbo dos palácios de governo, sindicatos e   até mesmo  nos discursos ideocráticos nas assembleias partidárias  ou estudantis,  é evidente!

Esse choque não poderá ser resolvido com mera maquilagem cosmética institucional. Terá o Poder Público que assimilar o choque tecnológico e buscar se adaptar à enorme transparência e interatividade exigida pelo cidadão interessado no serviço.

Parte considerável da raiz do problema que hoje explode nas ruas e acovarda dirigentes e corporações públicas, diz respeito à essa questão e, paradoxalmente, constitui justamente a sua solução…

Fonte: Última Instância