Filantropia na área da saúde e os 60% de atendimentos pelo SUS

O presente estudo tem por objeto uma breve análise do requisito histórico exigido dos hospitais beneficentes para a fruição da imunidade às contribuições para a seguridade social, prevista no parágrafo sétimo, do artigo 195, da Constituição Federal.

Primeiramente temos por obrigação científica identificar o instituto jurídico como imunidade, muito embora a redação do parágrafo sétimo, do artigo 195, da Constituição Federal traga a expressão isenção.

Dito isso, cumpre esclarecer que o requisito de atendimento de 60% (sessenta por cento) da clientela das entidades de saúde pelo Sistema Único de Saúde está arraigado à idéia de concessão do reconhecimento à imunidade às contribuições sociais das entidades beneficentes de assistência social em razão de existir no ordenamento jurídico há mais de dezoito anos[1], pois foi introduzido como requisito para a obtenção do certificado de filantropia, que era um dos requisitos do artigo 55, da Lei 8.212/91 para a concessão da “declaração de isenção”.

Agora, para piorar a situação das entidades de saúde, o requisito foi “regulamentado” pelo Decreto 7.237/2010 e 7.300/2010, que criou normas contrárias à lei 12.101.

Mas o maior absurdo veio com a Portaria 3.355/2010, do Ministério da Saúde, que criou uma complicada fórmula para o cálculo do percentual, que, além de não dar segurança às entidades quanto ao cumprimento, não aceita todos os serviços prestados ao SUS no cálculo, mas somente os dados que  constam no sistema do Ministério da Saúde, não valora corretamente atendimentos em leitos de UTI, atendimentos ambulatoriais de alto custo como por exemplo de oncologia.

Sobre a ilegalidade do Decreto e da Portaria há muito o que dizer, mas o objetivo deste breve estudo é a análise do requisito previsto agora na lei: 60% (sessenta por cento de atendimentos pelo SUS).

Sem medo de errar, afirmamos que este requisito é absolutamente inconstitucional, e nossa afirmação não se alicerça na questão tão difundida de estar esta previsão inserida em lei ordinária ao invés de lei complementar.

A inconstitucionalidade desta exigência é tamanha que defendemos a tese de que, mesmo que fosse previsto em lei complementar, este requisito seria inconstitucional.

Isto porque não se trata de um requisito material que configure uma entidade como beneficente de assistência social.

Este cálculo é totalmente aleatório. Isto sem contar que a cada R$100,00 gastos em um atendimento, o SUS remunera R$55,00. Ou seja: em média cada atendimento pelo SUS causa um prejuízo de 45%[2].

É insustentável a previsão legal que obriga o atendimento de 60%(sessenta por cento) pelo SUS às instituições de saúde como requisito para o gozo da imunidade às contribuições de seguridade social.

Este percentual desnatura o conceito de entidade beneficente de assistência social.

Tecnicamente ressaltamos que o dispositivo trata de uma imunidade. As entidades imunes são intributáveis pelas contribuições de seguridade social.

O dispositivo não trata de uma isenção, muito menos de um favor legal em prol das entidades beneficentes. A Constituição Federal de 1988 trouxe outras entidades intributáveis por impostos: União relativamente aos impostos dos Municípios e Estados e estes reciprocamente (art. 150, VI, “a”); templos de qualquer culto (entidades religiosas – art. 150, VI, “b”); partidos políticos, inclusive suas fundações, e entidades sindicais dos trabalhadores (art. 150, VI, “c”), entre outros.

A imunidade retira qualquer possibilidade de instituição de imposto ou, no caso do parágrafo 7º, do artigo 195, da Constituição Federal de 1988, de instituição de contribuição para a seguridade social pela União.

Conforme antes referido, não se pode condicionar o a fruição de uma imunidade ao atendimento de condições que não sejam exatamente àquelas que qualifiquem uma entidade como beneficente de assistência social.

O Direito Tributário se vale dos conceitos do direito privado. Nos termos do artigo 110 do Código Tributário Nacional, a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente pela Constituição Federal.

O conceito de entidade beneficente de assistência social vigente quando da construção do pensamento jurídico e que culminou com a publicação da Constituição Federal de 1988 não trazia este requisito, apenas, atendimento parcial em gratuidade.

Portanto, advogamos que nenhuma instituição de saúde do país pode perder o certificado de entidade beneficente, muito menos deixar de usufruir da imunidade às contribuições de seguridade social por não atingir o percentual de atendimento de 60% (sessenta por cento) pelo SUS, ainda mais nos termos previstos na inconstitucional de ilegal portaria 3.355/2010.

 


[1] O requisito foi introduzido pelo Decreto 752, de 16 de fevereiro de 1993, depois foi previsto no Decreto 2.536/98, depois na Lei 9.732/98 e agora na Lei 12.101/2009.

 

[2] Dados divulgados pela Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos do Rio Grande do Sul – www.federacaors.org.br.