Declaração de Serviços Médicos e de Saúde (Dmed) – Ilegalidades

O presente estudo tem por objeto consulta que nos foi formulada por uma instituição que presta serviços de saúde em razão das obrigações decorrentes da Declaração de Serviços Médicos e de Saúde (Dmed).

A consulta consiste em saber: (i) sobre a obrigatoriedade da entrega da Demed; (ii) a possibilidade do estabelecimento de saúde condicionar o atendimento de seus pacientes à apresentação do CPF; (iii) as consequências da falta de cumprimento da obrigação acessória em questão; e (iv) possíveis soluções jurídicas.

Inicialmente vamos caracterizar a Dmed: em 22 de dezembro de 2009 foi instituída[1] a Declaração de Serviços Médicos e de Saúde (Dmed), que obriga as instituições que prestam serviços de saúde a informar, nos termos do inciso I, do artigo 4º, da IN 985 e alterações:

a) o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e o nome completo do responsável pelo pagamento e do beneficiário do serviço; e

b) os valores recebidos de pessoas físicas, individualizados por responsável pelo pagamento.

Como se vê, a Dmed é uma obrigação tributária acessória, instituída por uma instrução normativa, que prevê penalidade pelo seu não cumprimento.

A respeito da instituição de obrigação tributária acessória por meio de instrução normativa, entendemos que por criar ônus ao contribuinte, deveria sempre ser feita por meio de lei. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça tem validado a criação de obrigação tributaria acessória por meio de instruções normativas com base no art. 16[2], da Lei 9.779/1999.

Todavia, a instituição de penalidade por não cumprimento da obrigação acessória tem de ser prevista em lei, nos termos do artigo 97, V, do Código Tributário Nacional.

Assim, a resposta à primeira pergunta é que é obrigatória a entrega da Dmed.

A segunda questão é de extrema importância para as conclusões finais, pois a Instituição prestadora de serviços de saúde indaga sobre a possibilidade de condicionar o atendimento de paciente particular à apresentação do CPF.

Pode parecer estranho ao leitor deste artigo que alguém não queira nota fiscal de uma instituição prestadora de serviços de saúde, especialmente quando se imagina que estes gastos são dedutíveis do imposto de renda pessoa física. Mas há pessoas que não informam seu CPF, seja porque o gasto hospitalar é incompatível com seu rendimento declarado, ou porque não faz declaração completa do imposto de renda e deseja repassar a nota fiscal do serviço para alguém que vá utilizar o documento para abater do seu imposto de renda. Os motivos podem ser muitos além destes.

Por sua vez, a pessoa jurídica que presta serviços de saúde não pode simplesmente negar atendimento a uma pessoa por falta do CPF, pois o caso pode ser enquadrado no crime de omissão de socorro[3], ainda mais em se tratando de um caso grave ou emergencial no qual há risco de vida.

Além disso, a inscrição no CPF somente é obrigatória[4] para as pessoas que se enquadram nas situações listadas nas instruções normativas da Receita Federal do Brasil[5] – situações estas pessoais das quais uma instituição de saúde não tem conhecimento, quando do atendimento.

Assim, entendemos que não há como condicionar os atendimentos à apresentação do CPF do paciente e/ou do responsável. Nem mesmo se pode em casos de atendimentos eletivos particulares condicionar o atendimento à apresentação do CPF, pois se não é obrigatório alguém ser cadastrado no CPF.

A terceira questão abordada é referente às consequências do não cumprimento desta obrigação.

Conforme antes referido, não se pode condicionar o atendimento à apresentação do CPF. Muitas vezes ocorre que o paciente, ou o responsável que paga a conta, após o tratamento, se nega a fornecer o CPF ou não tem CPF. O paciente é atendido, paga a conta em dinheiro e se retira do estabelecimento hospitalar.

Que medida a instituição de saúde pode tomar? Não pode negar o atendimento nem impedir o paciente de se retire sem informar o CPF.

Por óbvio que apresentar o CPF de todos os pacientes particulares à Receita Federal do Brasil se torna impossível.

Neste sentido, a norma que instituiu a Dmed é ilegal, visto que se não é obrigatório a todos os brasileiros possuírem cadastro no CPF, não se pode punir uma instituição prestadora de serviço de saúde que não consiga informar à Receita Federal do Brasil o CPF de todas as pessoas que atende.

Basta o paciente afirmar que não tem CPF e o prestador não poderá exigir número algum, pois não há um cadastro on line disponível para consulta por nome de pessoa ou número de identidade.

O não cumprimento da obrigação tributária acessória acarreta a aplicação de multas altíssimas[6]previstas na Instrução Normativa RFB nº 985, de 22 de dezembro de 2009.

Para as instituições filantrópicas, aqui entendidas como as certificadas nos termos da Lei 12.101, a punição é ainda maior, pois conforme o disposto no artigo 29, VII, a entidade beneficente de assistência social pode ter suspensa a isenção às contribuições de seguridade social.

As possíveis soluções jurídicas indicadas orientadas: (i) o protocolo de um processo de consulta à Receita Federal do Brasil, a fim de esclarecer estes casos; (ii) ajuizamento de ação judicial preventiva visando uma decisão que desobrigue da apresentação do CPF de todos os pacientes ou, pelo menos, das sanções previstas em lei.

Há ainda a solução política, que consiste na atuação dos órgãos de classe das entidades de saúde para que seja flexibilizada a instrução normativa 985, tornando possível, nos casos em que não se dispõe do CPF, a apresentação da Dmed com outros dados que sirvam para identificar o paciente ou responsável que paga por serviços médicos particulares: tais como número do RG, número da inscrição em órgão de classe, ou o nome completo declarado no ato do atendimento.

As instituições de saúde querem contribuir com a fiscalização e cumprir suas obrigações, até porque não há vantagem alguma em emitir documento fiscal, mas não informar o pagador, contribuindo para atos contrários à lei por parte de pessoas que não querem se identificar por motivos escusos.

Portanto, urge que o dispositivo seja flexibilizado, tornando possível a apresentação da Dmed com outros dados identificadores dos pagadores que não o CPF, sem que se apliquem punições para as entidades prestadoras de serviços de saúde, em especial as instituições beneficentes do terceiro setor.

Caso não o seja flexibilizada a norma, a solução é buscar perante o Poder Judiciário a tutela dos legítimos direitos violados pela imposição de obrigação tributária acessória de impossível cumprimento, qual seja: a obrigatoriedade da apresentação de CPF de todos os pacientes particulares.

 


[1] Instrução Normativa RFB nº 985, de 22 de dezembro de 2009

 

[2] Art. 16. Compete à Secretaria da Receita Federal dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo, inclusive, forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável.

[3] Omissão de socorro

Art. 135.  Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

[4] A obrigatoriedade foi instituída pela Instrução Normativa  – IN – SRF nº 070, de 05 de  julho de 2000, revogada por outras instruções normativas que igualmente foram revogadas e alteradas, estando vigente hoje a IN 1.042, de 10 de junho de 2010.

[5] Art. 3º da IN 1.042/2010. Art. 3º Estão obrigadas a inscrever-se no CPF as pessoas físicas:

I – sujeitas à apresentação da Declaração de Ajuste Anual do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF);

II – inventariantes, cônjuges ou conviventes, sucessores a qualquer título ou representantes do de cujus que tenham a obrigação de apresentar a DIRPF em nome do espólio ou do contribuinte falecido;

III – cujos rendimentos estejam sujeitos à retenção do imposto de renda na fonte, ou que estejam obrigadas ao pagamento desse imposto;

IV – profissionais liberais, assim entendidos aqueles que exerçam, sem vínculo de emprego, atividades que os sujeitem a registro em órgão de fiscalização profissional;

V – locadoras de bens imóveis;

VI – participantes de operações imobiliárias, inclusive a constituição de garantia real sobre imóvel;

VII – obrigadas a reter imposto de renda na fonte;

VIII – titulares de contas bancárias, de contas de poupança ou de aplicações financeiras;

IX – que operem em bolsas de valores, de mercadorias, de futuros e assemelhadas;

X – inscritas como contribuinte individual ou requerentes de benefícios de qualquer espécie perante o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS);

XI – com mais de 18 (dezoito) anos que constem como dependentes em DIRPF;

XII – residentes no exterior que possuam no Brasil bens e direitos sujeitos a registro público, inclusive:

a) imóveis;

b) veículos;

c) embarcações;

d) aeronaves;

e) participações societárias;

f) contas-correntes bancárias;

g) aplicações no mercado financeiro;

h) aplicações no mercado de capitais.

Parágrafo único. As pessoas físicas, mesmo que não estejam obrigadas a inscrever-se no CPF, podem solicitar a sua inscrição.

 

[6] Art. 6º A não-apresentação da Dmed no prazo estabelecido, ou a sua apresentação com incorreções ou omissões, sujeitará a pessoa jurídica obrigada, às seguintes multas:

I – R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês-calendário ou fração, no caso de falta de entrega da Declaração ou de sua entrega após o prazo; e

II – 5% (cinco por cento), não inferior a R$ 100,00 (cem reais), do valor das transações comerciais, por transação, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta.