Como o Direito Digital está transformando a atuação dos Advogados

Autora de um dos primeiros livros sobre Direito e Tecnologia na Língua Portuguesa, a advogada Patrícia Peck Pinheiro sempre foi interessada por informática. Aos 13 anos, já era programadora. A experiência com a computação revelou sua inclinação para regras. Daí surgiu a busca pela Faculdade de Direito. Quando abriu o escritório, em 2004, já tinha decidido que sua área seria a Digital, mesmo sendo questionada pelos colegas sobre o fato de fazer “só isso”.

Hoje, o “só isso” se transformou em uma área promissora da advocacia. Como ela mesma explica na entrevista a seguir, o Direito Digital deixou de ser entendido como uma disciplina vertical, aquele Direito de Informática, de Tecnologia ou Cibernético. Trata-se do Direito de uma Sociedade Digital que impõe desafios aos advogados. É justamente essa nova realidade que ela vai explorar na sua palestra no dia 23 de novembro, no Aurum Summit 2017, evento pioneiro no Brasil sobre práticas inovadoras de gestão no Direito.

Vimos no seu perfil que você é programadora desde os 13 anos de idade. De onde e como surgiu seu interesse por programação?

Patricia Peck: Fui muito inspirada pelo contexto que vivi na infância, já que sempre tive a casa cheia de novas tecnologias trazidas pelos meus pais, que eram comissários de voo. Sempre fui muito curiosa, estudei Basic e Cobol, aos 12 anos de idade, e comecei a desenvolver programas para computador. Ao entrar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, criei um site chamado “Urbanóide” para troca de referências de Direito e Tecnologia, Softwares Livres e Tecnologia da Informação.

Você não pensou em seguir carreira na área de tecnologia da informação?

Patricia Peck: Sim, cheguei a pensar em seguir carreira na área da Tecnologia da Informação. Mas como estudava com muitos livros, era autodidata e tinha feito alguns cursos de programação, achei que seria mais proveitoso fazer a Faculdade de Direito, pois complementaria mais os meus conhecimentos sobre as questões envolvendo as leis, as regras e, principalmente, o comportamento do indivíduo, que sempre me despertou muito interesse.

Por que escolheu o Direito? Desde o início da escolha da profissão de advogada, você já sabia que atuaria com Direito Digital?

Patricia Peck: O que mais influenciou nessa escolha foi uma conversa que tive com a minha professora de História. Ela perguntou por que eu gostava tanto dos computadores. Respondi que, “ao escrever uma regra para a máquina, ela identifica e cumpre a regra”. Foi em meio a esse debate de ideias que ela mesma sugeriu que eu fizesse a faculdade das regras.

Mas desde o estágio eu tinha a fama no escritório de ser “a estagiária que entende de tecnologia”, porque tinha um site e sabia programar. Então, para mim, era natural pesquisar sobre a sinergia entre o Direito e a tecnologia.

Desde a formatura (em 1998), atuo com Direito Digital. Nessa época, escrevi uma crônica para concorrer a um prêmio falando que no futuro a faculdade fecharia as portas, porque todas as aulas seriam pela internet. Em 1999, enfrentamos o bug do milênio – então, por causa da crônica e do rótulo de “advogada que entende de tecnologia”, comecei a ser procurada para falar sobre quebras de contratos e outras questões legais relativas ao bug.

O conhecimento em programação te ajudou na carreira como advogada?

Patricia Peck: Claro. O profissional de Direito Digital precisa de conhecimentos jurídicos e técnicos. E isso vai ser um diferencial em sua carreira. No começo do escritório, era muito comum que quem solicitasse os nossos serviços fossem o gestor de TI, ou o CIO [Chief Information Officer, ou Gerente de TI, em tradução livre], ou então os responsáveis da área que queriam investir no Marketing Digital. A demanda era por profissionais que tivessem conhecimento jurídico, mas que também entendessem de tecnologia, como programação e outras questões técnicas. Isso fez a diferença para obter oportunidades de trabalho e a confiança dos clientes no começo do escritório.

Por exemplo, ao acompanhar como se colhe uma prova eletrônica, o advogado que tiver noções de tecnologia terá muito mais propriedade na verificação do procedimento.

Outro fato curioso é que, ao ingressar na Faculdade de Direito, a maioria das obras escritas sobre Direito e Tecnologia eram estrangeiras, dos Estados Unidos, baseadas em autores que escreveram sobre computer law, cyber law, digital economy ou digital society, com alguns poucos autores europeus. Por isso, em 2001, resolvi escrever um livro em português sobre o tema que se tornou um manual de referência utilizado hoje em muitas decisões do judiciário brasileiro.

Para ser um bom advogado na área digital é preciso entender de programação ou desenvolvimento de sistemas?

Patricia Peck: Os conhecimentos técnicos são diferenciais para os profissionais da área, já que o Direito Digital é transversal e abrange diversos segmentos. Hoje, é importante que o advogado se especialize com certificações técnicas e estude temas, como ITO e COBIT. Por exemplo, na discussão de privacidade e cibersegurança, é indispensável entender como funciona a criptografia e a coleta de biometria. Nisso tudo, o que mais impacta é conhecer sobre provas eletrônicas e perícia digital. É como perguntar para a máquina o que aconteceu. Isso deveria ser ensinado nas graduações de Direito para que os estudantes tivessem a oportunidade de, no laboratório, usar softwares que fazem a coleta de prova eletrônica, tendo uma compreensão maior sobre esse tipo de procedimento. É um cenário novo: a prova é eletrônica e a testemunha é a máquina. É o novo pensar jurídico que exige do profissional conhecimento técnico, prático e especializado.

Quais atributos um advogado precisa ter para ser bem-sucedido em Direito Digital?

Patricia Peck: O advogado tem que ser curioso, gostar de tecnologia, e, principalmente, de estudar e continuar se atualizando. A todo o momento surgem novas informações e novas tecnologias. Essas mudanças exigem dedicação e um contínuo aperfeiçoamento. Por exemplo, o bitcoin e blockchain ganham espaço no mercado, preciso aprender e entender do que se trata para poder fazer um contrato, um parecer ou uma petição que envolva essas inovações.

A melhor recompensa para esse esforço é que o Direito Digital dá a possibilidade de você inovar, fazer algo que ninguém nunca fez. Mas o grande desafio do profissional do Direito Digital continua sendo o conhecimento da matéria. Os assuntos se renovam cada vez mais, é um volume de temas que vem aumentando desde os anos 90, principalmente com a criação do ‘www’ por Tim Berners-Lee, mas que quase não estão presentes na grade curricular da graduação de Direito. São questões tratadas somente em especializações e cursos de pós-graduação.

O Direito Digital mudou muito, desde quando você começou a atuar nessa área? Por conta da velocidade com que a tecnologia avança, pode-se afirmar que o advogado que trabalha com Direito Digital precisa buscar atualização de forma mais constante do que um profissional que atua em outra área do Direito?

Patricia Peck: Sim, além de saber a matéria, ele precisa manter uma atualização constante, já que estamos falando de uma área em contínua evolução. O que presenciamos é a revisitação dos institutos fundamentais do Direito relacionados a diferentes temas, como à identidade, já que as pessoas se relacionam por meio de interfaces e não presencialmente; à soberania, pois as fronteiras não são mais geográficas; e às testemunhas, que passaram a ser máquinas.

O destaque é que o Direito Digital deixou de ser entendido como uma disciplina vertical, aquele Direito de Informática, de Tecnologia ou Cibernético, para se tornar o Direito como um todo, de uma Sociedade Digital. Por isso, ficou horizontal, transversal e engloba todas as disciplinas do Direito: civil, criminal, contratual, tributário, de propriedade intelectual, constitucional, trabalhista, entre outros.

Essas mudanças exigiram que tipo de atualização e/ou formação dos advogados que lidam com Direito Digital?

Patricia Peck: Mediante essas novas situações que acontecem no ambiente digital, foi necessário pensar em novos tipos de crimes aos quais os usuários estão sujeitos. Atualmente, estão sendo rediscutidos institutos que são pilares do pensamento jurídico, como privacidade, liberdade de expressão e a própria ética digital. Por isso, escrevi meu primeiro livro, Direito Digital, que saiu em 2001 e está na sexta edição, símbolo de como a área continua evoluindo.

Além da qualificação, outro desafio é a própria prática jurídica. Em 2004, quando decidi abrir meu escritório, meus colegas me perguntavam se eu ia mesmo trabalhar “só” com isso. Na época, éramos dois: um estagiário e eu. Hoje, somos 23 profissionais, sendo 17 advogados.

O avanço da tecnologia abriu mais oportunidades de trabalho para advogados que querem atuar em Direito Digital?

Patricia Peck: Bastante. Em apenas 13 anos, o mercado cresceu e amadureceu muito. Na esfera criminal, quase tudo que envolve prova está eletrônico. Testemunhas se transformaram nas máquinas. Já no âmbito das redes sociais, há muito conflito envolvendo exposição de marca, difamação, calúnia. Hoje, qualquer advogado tem que pensar e refletir num cenário digital, de uso de bancos de dados de corporações e de indivíduos.

As empresas passaram a se preocupar mais com as atitudes do trabalhador quanto ao uso das ferramentas tecnológicas. Mau uso dos recursos, com finalidade particular, vazamento de informações, discussão de horas extras por conta do uso dos dispositivos de internet fora do horário de trabalho.

Ou seja, tudo isso gerou novas oportunidades de atuação de um especialista em Direito Digital.

Em quais frentes um advogado que escolhe o Direito Digital como especialidade pode atuar?

Patricia Peck: Muitas. Pode atuar na esfera consultiva, no contencioso, trabalhista, civil, penal, entre outras. Pode focar em um segmento empresarial para estabelecer os negócios entre as empresas, na questão do societário para o valuation dos ativos intangíveis em uma fusão e aquisição, na parte de civil envolvendo contratos, relações entre consumidores ou trabalhistas, ou a parte criminal no direito penal que cresceu muito devido aos crimes eletrônicos e a fraude eletrônica.

Os casos mais corriqueiros são as celebrações de contratos das empresas que têm o digital como core business, como o fornecimento de internet e o desenvolvimento de softwares, mas a demanda envolvendo os consumidores vem aumentando muito, por conta do crescimento das transações comerciais online, trabalhistas, criminais e mídia social.

As primeiras aparições do Direito Digital aconteceram nos anos 90, com contratos de telecomunicação, tecnologias, e hoje ele está presente em qualquer área de atuação.

Fonte: jusbrasil.com.br