Mitos e verdades sobre as “pedaladas fiscais”

Com a discussão das chamadas “pedaladas fiscais” como potencial fundamento para um impeachment, a recente rejeição, pelo TCU, das contas do exercício de 2014 da Presidente Dilma, ganhou destaque sem precedentes na imprensa. Mas, em termos fiscais e jurídicos, o que são exatamente as “pedaladas”?

No jargão dos especialistas do orçamento público, o termo “pedaladas” sempre foi usado para definir um atraso de pagamento, quando uma despesa pública que venceria em certa data acaba sendo, de uma ou outra forma, postergada. O compromisso do governo em nada muda, mas a postergação permite reduzir temporariamente um gasto e fabricar um breve efeito de superávit primário. Isto porque, no Brasil, o resultado fiscal costuma ser calculado pelo Banco Central segundo o chamado regime de caixa – ou seja, a despesa é computada na data em que saiu dos cofres públicos. Nas maiores economias do mundo, como EUA, Reino Unido, França e Canadá, é incomum que a autoridade monetária seja responsável por medir os principais indicadores fiscais. Mais raro ainda é que as contas públicas não sigam o regime de competência, tal como nas empresas, em que se computa a obrigação quando assumida e não quando paga.

Para melhorar artificialmente o superávit primário em 2014, o governo federal recorreu como nunca à prática de “pedalar” os gastos. Uma forma especial foi pedalar com a bicicleta dos outros: no caso, bancos públicos pagaram os gastos do Tesouro no lugar dele, em especial, benefícios de programas sociais (como seguro-desemprego e bolsa família). O TCU demonstrou que, em 2014, foram sacados a descoberto volumes expressivos e por um período de tempo inédito no caso dos pagamentos de benefícios realizados pela Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, sem a posterior e imediata cobertura pelo Tesouro Nacional.

Segundo o relatório do TCU, ao final de agosto de 2014, a Caixa Econômica Federal registrou em seu ativo R$ 1.740,5 milhões em valores a receber do Governo Federal, referentes a pagamentos relativos a programas sociais (Bolsa Família, Abono Salarial e Seguro Desemprego). Tais valores não eram registrados pelo Bacen no rol de obrigações da Dívida Líquida do Setor Público. O mesmo relatório mostra que, nos exercícios financeiros de 2013 e 2014, o saldo das contas referentes ao Seguro-Desemprego ficou negativo em quinze dos dezesseis meses, enquanto o saldo da conta referente ao Abono Salarial ficou negativo em onze dos dezesseis meses. Com relação ao Abono Salarial, os dados encaminhados pelo MTE ao TCU mostraram que: “em 2014, até o dia 28 de novembro, em 79 (setenta e nove) dias o saldo da conta de suprimento ficou negativo; o maior valor para o saldo negativo foi de R$ 1.508,9 milhão; o valor médio dos dias com saldo negativo foi de R$ 314,1 milhões”. A conta referente ao Bolsa Família chegou a ficar com um saldo negativo de mais de R$ 2 bilhões em 31 de julho de 2014.

Como qualquer outro correntista, quando a conta bancária fica negativa, a instituição financeira cobra juros de modo que tal operação constitui uma operação de crédito. A Caixa chegou a reclamar na Justiça que não recebeu tais juros. Antes, acionou a Advocacia da União através da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal em busca de um acordo. Logo em seguida, porém, a AGU suspendeu a tramitação do processo e passou a alegar que se tratava de uma mera “prestação de serviços sui generis”. Nunca demostrou, porém, como e quanto se pagou por estas prestações, nem quanto foi recolhido de impostos sobre tais serviços (ISS, PIS, COFINS).

O problema é que a Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe o governo de tomar empréstimo junto a um banco que controla. A Lei do Colarinho Branco, (Lei nº 7.492/86) também prevê como crime o fato do controlador “tomar ou receber direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamentos” de seu próprio banco. Implicitamente admitindo que houve uma irregularidade ou até mesmo um crime, a defesa do governo Dilma passou a defender a tese de que essa ilicitude já teria sido cometida antes, inclusive por outros governos, sem qualquer condenação da prática pelo TCU. O TCU, por sua vez, no julgamento final das contas, demonstrou com séries históricas o período e os valores dos saldos a descoberto que as contas ficaram nos últimos anos. A conclusão é que, em 2014, o governo ultrapassou, em muito – tanto no tempo quanto nos valores – o que ocorreu nos meses e anos mais recentes, ao menos no caso da Caixa Econômica.

Nesta comparação, é importante distinguir situações pontuais de práticas recorrentes. Segundo a própria Caixa, os repasses são baseados em estimativas e o efetivo saque pode se alterar de um momento para outro, causando um saldo positivo ou negativo após a transferência aos beneficiários. Isso é muito diferente da ausência de qualquer repasse prévio por longos dias, como mostram os dados do TCU no caso do governo Dilma, discutidos acima.

Mas qual o impacto destas “pedaladas” do governo Dilma no erário público e na economia do país? Muitos argumentam que, por se configurarem simples atrasos nos repasses, trata-se de mera questão contábil. Não houve efetivo desvio ou prejuízo aos cofres públicos. Esta visão esconde prejuízos públicos importantes, ligados à falta de transparência. São, porém, difíceis de mensurar. Justamente porque o governo conseguiu maquiar as contas por tanto tempo, fugindo de assumir o déficit fiscal e diminuí-lo por meio de mais dívida pública, pode ter se agravado a bola de neve que nos levou aonde estamos: orçamento apresentado com previsão de déficit fiscal, necessidade de ajuste fiscal drástico com cortes de gastos e aumento de receitas, instabilidade econômica, rebaixamento da nota de investimento do país, etc. Com mais transparência à época, talvez algumas medidas já poderiam ter sido tomadas antes, permitindo talvez um ajuste fiscal gradual e com maior confiança dos agentes econômicos.

Fonte: jota.info