Uma jurisprudência que serve para tudo

42 e 28. Estes são os números de decisões do STF citadas, respectivamente, nos votos dos ministros Celso de Mello e Teori Zavascki no último HC referente a prisões efetuadas na operação “lava jato” (HC 127.186/PR). O que explica esses números? E o que eles significam?

A diferença não se explica pela extensão dos votos, que têm mais ou menos o mesmo tamanho. Tampouco podemos dizer que cada uma das posições defendidas pedia uma “quantidade” diferente de precedentes para se sustentar. Na verdade, as referências aos precedentes vão sendo costuradas na argumentação de cada um dos ministros para sustentarem decisões opostas: no caso do ministro Teori Zavascki, pela concessão da ordem; no do ministro Celso de Mello, pelo indeferimento do HC.

O número de precedentes citados parece ser, portanto, aleatório. Como também parece ser aleatório o seu papel na justificação de cada decisão. Nos votos, não há cotejo entre o caso atual e os casos que serviram de base para a definição dos precedentes invocados. Há, ao contrário, referências pontuais a argumentos ou teses gerais citados em trechos de precedentes, que, por sua vez, funcionam como premissas também gerais para a fundamentação de cada um dos habeas corpus. E, uma vez que cada ministro parte de argumentos gerais diferentes, é possível construir, a partir de um conjunto diferente de [trechos de] precedentes, cadeias de razões capazes de sustentar resultados distintos. Assim, é inegável que, para cada caso que chega ao STF, haja “inúmeros precedentes”, como é comum ler nas manifestações dos ministros. No limite, há tantos “precedentes” quantos são os argumentos já apresentados nas salas do tribunal para embasar os votos dos seus integrantes. Nesse contexto, precedentes não funcionam como limites ao julgador. São, ao contrário, oportunidades. Fontes praticamente inesgotáveis para a sustentação de inúmeros pontos de vista.

Nesse cenário, e com esse alto número de citações, é de se esperar que os precedentes citados se refiram a casos muito diferentes daquele que se decide. Na melhor das hipóteses, o que os une não é a proximidade entre os fatos dos casos atual e precedente, mas entre os argumentos das duas decisões, que podem estar sendo usados em contextos completamente diferentes. Para voltar aos votos dos ministros Celso de Mello e Teori Zavascki, podem, por exemplo, variar os crimes, o grau de repercussão dos fatos, traços do agente, o suporte probatório e tantos outros elementos capazes de tornar a aplicação de cada precedente indicado mais ou menos apropriada na solução do caso atual.

O uso do HC 95.290/SP por ambos os ministros ilustra claramente o problema. Para o ministro Celso de Mello, a parte relevante do precedente é a que reconhece que “a prisão cautelar (…) não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal no processo penal”. Para o ministro Teori Zavascki, contudo, foram consideradas partes cruciais do precedente as que assentam teses como: “a prisão preventiva – enquanto medida de natureza cautelar – não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada do indiciado ou do réu” e “a prisão cautelar não pode apoiar-se em juízos meramente conjecturais”.

Como se nota, as três passagens não são incompatíveis. Não, ao menos, teoricamente. Mas se o trabalho com precedentes se resume à seleção de trechos de decisões que só indicam argumentos gerais, nada impede que um mesmo julgado possa ser citado em manifestações divergentes.

E nada impede igualmente que julgados diferentes possam ser selecionados por ministros que votam em um mesmo sentido. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, que também concedeu a ordem, usou 3 alegados precedentes em seu voto, sendo que dois deles diferentes dos julgados indicados pelo ministro Zavascki. Há diferenças relevantes entre os casos citados? O que justifica a seleção de decisões tão diferentes?

Em um momento em que se procura instituir uma prática saudável de precedentes no país, constatar que decisões anteriores de um tribunal como o Supremo podem sustentar decisões excludentes – quando aplicadas ao mesmo caso de agora – é sinal preocupante. Três possíveis explicações para esse fenômeno são: (i) o tribunal não possui ainda, mesmo depois de tantos julgados, posicionamento claro sobre a resposta que deve dar para casos com determinadas características; (ii) as decisões são amplas demais e os ministros acabam se comprometendo excessivamente quando decidem casos que não exigem tantos argumentos; (iii) os critérios para a aplicação de decisões passadas do tribunal podem não estar ainda estabelecidos.

Nas três hipóteses o problema não é necessariamente de vinculação ou não a decisões passadas. Quando são chamados a decidir, os ministros do Supremo podem até se sentir pressionados pelas decisões que a corte tomou no passado e, mesmo assim, podem divergir sobre qual decisão os vincula, o que em cada decisão os vincula ou sobre quais devem ser os critérios usados para lidar com uma decisão anterior. O problema maior é de manejo dos julgados passados. Em todas as hipóteses explicativas, porém, o efeito é o mesmo: os precedentes da corte não são capazes de dar pistas sobre a solução de casos futuros no próprio tribunal. Com um acervo que serve para sustentar qualquer conclusão, as decisões do tribunal cumprem o papel oposto ao que delas se espera. Em vez de maior previsibilidade, sobra desorientação. A manutenção dessa prática pode até ser positiva para os ministros, que sempre poderão recorrer a um julgado passado, não importa o que decidam. Mas, com menos consistência e previsibilidade, perdem a instituição e a sociedade.

Fonte: jota.info