Aumento do PIS/Cofins afronta legalidade tributária

Foi publicado, em 1º de abril de 2015, o Decreto nº 8.426, que restabelece a incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa. Disposição dessa natureza encontraria fundamento na Lei nº 10.865/04 que, em seu art. 27, § 2º, autoriza o Poder Executivo a reduzir e restabelecer referidas alíquotas. Em vista disso, a partir de 1º de julho de 2015, as pessoas jurídicas sujeitas ao regime de tributação não-cumulativo da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS, que se encontravam submetidos à alíquota zero, devem passar a recolher esses tributos, em relação às suas receitas financeiras, mediante alíquotas de 0,65% e de 4 %, respectivamente.

Esse restabelecimento das alíquotas de tributos traz à tona um grande problema da atualidade: o desprezo pela lei ou a utilização desta para que, por vias oblíquas, sejam os tributos alterados por mecanismos infralegais.

Sempre que tenho a oportunidade, volto ao tema da estrita legalidade tributária e do seu necessário resgate no sistema jurídico brasileiro. Muito embora se trate de assunto que seja abordado, de longa data, por renomados doutrinadores, são exaradas, dia após dia, manifestações que levam à indevida redução do âmbito de aplicabilidade desse primado, quer em virtude (i) da análise isolada do art. 150, I, do Texto Constitucional, (ii) do argumento de que veículos infralegais, como os decretos e instruções normativas, enquadram-se no conceito de “legislação tributária”, ou, ainda, (iii) do entendimento de que Poder Legislativo está autorizado a delegar ao Executivo a regulamentação dos termos da lei.

Com isso, e muitas vezes, em nome da preponderância do aspecto funcionalista sobre o estrutural, tem-se verificado certo desprestígio da legalidade tributária, como se a exigência de lei fosse algo retrógrado, uma espécie de entrave à evolução do direito positivo.

Neste texto, o que se pretende é refletir sobre tais situações, demonstrando a importância da visão estrutural do direito, na qualidade de aspecto que confere segurança jurídica quanto à disciplina das condutas intersubjetivas, evidenciando, desse modo, a indissociabilidade entre estrutura e função das normas jurídicas.

Não há como examinar a função do ordenamento sem considerar seu aspecto estrutural. Do mesmo modo que Paulo de Barros Carvalho (“Entre a forma e o conteúdo na desconstituição dos negócios jurídicos simulados”) anuncia a impossibilidade lógica de segregar-se “forma” e “conteúdo”, também não se separam “estrutura” e “função” normativas. É o que pontua Mario Losano, em prefácio à edição brasileira da obra “Da estrutura à função”, de Norberto Bobbio (Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito), ao esclarecer que, embora complementada por explicações funcionais do direito, a visão estrutural do ordenamento conserva intacta a sua força heurística.

Estrutura e função se complementam e só podem ser compreendidas se consideradas em seu conjunto. A função do direito, consistente genericamente em disciplinar as condutas intersubjetivas para realizar os valores desejados pela sociedade, é implementada mediante a expedição de enunciados prescritivos que, tomados em sua estrutura lógica, desencadeiem um juízo hipotético-condicional, enlaçando, no consequente, dois sujeitos de direito, e que sejam introduzidos no ordenamento mediante veículo apropriado.

Por isso mesmo, acredito que a legalidade mantém, nos dias de hoje, a mesma relevância de outrora. A estabilização das expectativas normativas, como aspecto funcional das disposições normativas, só é possível quando se opera pela tipificação legal. É por meio da reserva legal que se confere segurança jurídica aos cidadãos perante as atuações estatais.

Isso não exclui a possibilidade de, por motivos extrafiscais, atribuir-se maior dinamicidade à alteração quantitativa das exações. Nesses casos, o próprio Texto Constitucional confere ao Executivo a liberdade para, dentro de certos limites postos pela lei, manipular as alíquotas tributárias. É nesse sentido a estipulação do art. 153, § 1º, da Carta Suprema, aludindo, taxativamente, a certos impostos: II, IE, IOF e IPI. Essas são as únicas hipóteses em que considero admissível a atuação do Executivo no que diz respeito a determinar a alíquota do tributo.

A despeito disso, a Emenda Constitucional nº 33/2001, acrescentando o § 4º ao art. 177 do Texto Supremo, enunciou que “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I – a alíquota da contribuição poderá ser: […] b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III , b”. Dispôs, assim, sobre a alterabilidade, por via infralegal, das alíquotas da chamada CIDE-Combustíveis.

Discordo veementemente da possibilidade de tal medida ser adotada pelo constituinte derivado. A legalidade, por ser mecanismo de concretização da segurança jurídica, estando prevista nos arts. 5º, II, e 150, III, b, da Constituição da República, assume posto de limitação material ao constituinte derivado, abrangendo matérias imodificáveis até mesmo por emenda constitucional. Conclusão desse calibre é feita com suporte no art. 60, § 4º, incisos III e IV, da CRFB, que vedam qualquer proposta de emenda tendente a abolir a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais. Veja-se que a Lei Maior, no dispositivo em questão, não se limita a proibir a incisiva abolição da matéria ali relacionada: o § 4º do art. 60 impede o emprego de vias indiretas, coibindo qualquer reforma que afete, ainda que de modo oblíquo, os preceitos que considera basilares do ordenamento constitucional.

No entanto, sob a argumentação de que “restabelecer” não seria o mesmo que “aumentar” tributo, referida prescrição tem permanecido incólume no ordenamento.

Pois bem. Novo episódio está diante dos nossos olhos. A diferença é que, agora, não foi uma emenda constitucional, mas a própria lei ordinária que conferiu ao Executivo a competência para mexer nas alíquotas de tributos (contribuição ao PIS/PASEP e COFINS incidentes sobre receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas submetidas ao regime não-cumulativo).

Provavelmente, assim como no passado, haverá manifestações no sentido de que tal medida nenhum vício apresenta, tendo em vista a existência de prévia lei autorizadora (art. 27, § 2º, da Lei nº 10.865/04). Também é provável que se repitam os argumentos levantados por alguns quando do acréscimo do § 4º ao art. 177 da Constituição, no sentido de que não se trataria de preceito autorizativo de elevação de tributo por veículo infralegal, mas de permissão para o restabelecimento de alíquota anteriormente estipulada.

Pensemos sobre isso.

Considerada a situação ora objeto de análise, apenas com suporte na Lei nº 10.865/04, o contribuinte tem condições de determinar sua obrigação tributária? A resposta é “não”. Assim sendo, como dizer que o Decreto estaria desempenhando mera função regulamentar? Ao contrário: está-se diante de verdadeira delimitação do vínculo obrigacional tributário, mediante estipulação do percentual a ser utilizado para efeito de cálculo do débito fiscal. Esse restabelecimento é, em realidade, elevação das alíquotas das contribuições examinadas, e, como tal, deve sujeitar-se à legalidade e à anterioridade nonagesimal (art. 195, § 6º, da CRFB), tendo esse último preceito sido observado quando da referência feita no art. 3º do Decreto nº 10.865/04, no sentido de que a alteração das alíquotas produzirá efeitos a partir de 1º de julho de 2015.

Para melhor ilustrar as nefastas consequências que podem advir de complacências como essa, imaginemos o seguinte: que os legisladores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios resolvam aderir à modalidade legislativa delegatória e, ao disciplinarem os tributos de sua competência, imponham uma alíquota elevada, mas insiram disposições que autorizem os correspondentes Executivos a reduzir e a restabelecer referidos percentuais. Assim, Imposto sobre a Renda, ITR, ICMS, IPVA, ITCMD, ITBI, IPTU, ISSQN, além de taxas e contribuições, por exemplo, poderiam vir a ter suas alíquotas alteradas por ato do Poder Executivo, desde que as respectivas leis estipulassem um limite máximo e previssem a possibilidade de redução e restabelecimento. Com medida dessa espécie, algo que inicialmente foi posto no art. 153, § 1º, da Carta Magna como exceção, em virtude do caráter extrafiscal dos impostos ali relacionados, tornar-se-ia procedimento banal, utilizado ordinariamente por quaisquer das entidades tributantes.

Por essa esteira, o valor “segurança jurídica”, almejado pelo limite objetivo da legalidade, ver-se-ia esfacelado e, tristemente, expurgado da ordem tributária. Eis o motivo pelo qual considero ser indispensável a indicação, pela lei, de todos os elementos determinantes da obrigação tributária. E nisso se inclui a alíquota, componente do critério quantitativo da regra-matriz de incidência. Daí a necessidade de ser seu coeficiente fixado por lei.

A legalidade não é um mero capricho de forma. Trata-se de meio indeclinável para a concretização da segurança jurídica.

Fonte: jota.info