Cisão das entidades beneficentes, religiosas e sem fins lucrativos

O presente artigo tem por escopo trazer luz a um tema atual, importante, mas que, com a devida vênia, tem sido tratado sem a devida profundidade e isenção.

Nos vários encontros dos quais participamos, ora como palestrantes, ora como ouvintes, percebemos que há profissionais do Direito que empreendem uma verdadeira “cruzada contra as cisões”, os que não impõem limites às cisões e as aconselham.

 

Entendemos que a questão não se resume à dicotomia do “certo e errado”.

 

No Direito e especialmente sobre este tema o que há são oportunidades, escolhas e consequências, que devem ser pesadas para a tomada das decisões para cada entidade.

 Desde a promulgação da Lei 12.101, que trata – ou deveria tratar – da regulamentação da imunidade prevista no artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição Federal de 1988, muitas dúvidas e questionamentos passaram a fazer parte do dia-a-dia das entidades beneficentes de assistência social, especialmente daquelas que atuam em mais de uma área e as religiosas.

 

Com a publicação da Lei 12.101 foi revogado o artigo 55 da Lei 8.212, que tratava da imunidade das entidades beneficentes de assistência social às contribuições de seguridade social.

 

As entidades do terceiro setor, além das alterações da lei 12.101, se viram diante de uma situação peculiar: o objeto da assistência social foi restringido.

Explica-se: conforme a regulamentação antiga (art. 55 da Lei 8.212 e decreto 2.536/98), as entidades beneficentes de assistência social, filantrópicas, religiosas, e as sem fins lucrativos que atuavam em mais de uma das áreas reconhecidas como “assistência social”(saúde, educação e assistência social strito sensu), para o fim de manter ou obter o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (que era um dos requisitos para se pleitear administrativamente o reconhecimento da “isenção” às contribuições de seguridade social) tinham de cumprir os seguintes requisitos:

(i)           área de saúde: 60% dos atendimentos pelo SUS, medida por paciente-dia (ofertar a prestação de todos os seus serviços ao SUS no percentual mínimo de sessenta por cento, e comprovar, anualmente, o mesmo percentual em internações realizadas, medida por paciente-dia.); ou

(ii)           área de educação e assistência social: aplicar anualmente, em gratuidade, pelo menos vinte por cento da receita bruta proveniente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente de aplicações financeiras, de locação de bens, de venda de bens não integrantes do ativo imobilizado e de doações particulares, cujo montante nunca será inferior à isenção de contribuições sociais usufruída.

Pela regulamentação anterior, as entidades mistas (com atuação em mais de uma área), poderiam lançar como gratuidade os gastos em assistência social: atendimentos gratuitos de saúde, gastos de atendimentos gratuitos de educação e, ainda, gastos de atendimentos gratuitos em ações sociais.

Aqui cumpre salientar que as entidades religiosas, institutos de vida consagrada, mitras, congregações religiosas e igrejas desenvolveram e desenvolvem atividades humanitárias em benefício do próximo. Estas atividades sempre foram reconhecidas como assistência social.

Com a nova regulamentação, todavia, somente são consideradas como assistência social as ações assistenciais, feitas de forma gratuita, continuada e planejada, para os usuários e a quem deles necessitar, sem qualquer discriminação, observada a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Em resumo, somente contam como assistência social para os fins da lei 12.101 as atividades cujos projetos podem ser registrados nos Conselhos Municipais de Assistência Social, o que exclui ações humanitárias, trabalhos de pastoral e toda atividade que, ajude o próximo e que não seja certificada pelo COMAS.

Esta situação causou um grande embaraço para entidades religiosas, pois o carisma das pessoas que as compõem levou a um dilema legal: continuar ações de solidariedade social? Como manter estas atividades em perder a filantropia?

Em vários encontros por todo o país colhemos o testemunho de irmãs e institutos de vida consagrada, irmãos de congregações e irmandades que querem manter atividades de auxílio humanitário, muitas das quais são feitas há mais de cem anos!

Porém, há um risco, que é o entendimento de que uma entidade de assistência social (que tenha no seu estatuto como atividade a assistência social) ao praticar atividades que não se enquadram na política nacional de assistência social, incida em infração legal ou estatutária e possa perder o direito à imunidade.

O Direito é interpretação e como Advogados diligentes, temos a obrigação de informar que há várias correntes de pensamento sobre o tema, e uma delas é que uma delas defende que entidades beneficentes de assistência social não podem ter outras atividades que não sejam enquadradas na política nacional de assistência social, mesmo que prestadas de forma beneficente em prol do próximo.

A lei 12.101 determina que as entidades que atuem em mais de uma área devem segregar receitas e despesas das três áreas. Aí pergunta-se: como contabilizar os custos de comunidades de religiosas e religiosos que exercem atividades religiosas, pastorais ou de auxílio humanitário que não se enquadrem na Lei Orgânica da Assistência Social? Segregar a contabilidade em quatro áreas? Tentar esconder e informar que estas atividades são assistência social?

Infelizmente neste momento não temos respostas seguras para todas estas respostas, pois não sabemos o que os Tribunais do país decidirão sobre este tema.

Por isso estudamos caso a caso, sem tentar formular uma   “receita padrão” para aplicar a todos os casos. Nestes estudos não está refutada a cisão nem a manutenção das entidades como estão e como sempre o foram.

A questão é: apresentar os riscos e possibilidades.

O patrimônio das entidades mistas e especialmente as religiosas decorre de anos de atividades nos moldes da legislação anterior, portanto, entendemos cabível uma cisão entre atividade religiosa e outras (educação, saúde e assistência social) com a criação de uma nova entidade, com fins específicos e cindindo atividades e o patrimônio correlato.

Uma instituição religiosa tem por característica sua transnacionalidade, manutenção dos religiosos e imunidade incondicionada,isto é: não precisa cumprir o artigo 14 do Código Tributário Nacional, apenas o artigo 150, VI, “c”, da Constituição Federal de 1988, especialmente o parágrafo 4º (a imunidade compreende somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas) e isso significa que pode remunerar seus membros, manter seus membros e remeter valores para o exterior, desde que sejam relacionados às finalidades da Igreja ou Religião vinculados).

Por sua vez, uma entidade beneficente de assistência social tem de atuar em assistência social (educação, saúde e assistência social), não pode remunerar seus membros e tem de aplicar todo resultado de sua atividade no país e na manutenção das atividades.

Assim, em se mantendo uma entidade religiosa com todas as demais áreas de atuação há risco de perda da certificação de que trata a lei 12.101. Claro que entendemos possível e viável um questionamento judicial sobre possível perda de direitos, especialmente para entidades Católicas em razão do Decreto nº 7.107 (decreto que promulgou o acordo entre a República Federativa do Brasil e o Vaticano) que prevê no seu artigo 5º a possibilidade de atividades religiosas e de assistência social com a fruição das imunidades e isenções, mas a pergunta é: a entidade religiosa quer correr este risco? A entidade religiosa Evangélica, Protestante, Luterana, Judáica, e outras têm o mesmo direito?

Em relação à última pergunta pessoalmente entendemos que em razão do princípio da igualdade e do direito de liberdade religiosa, o preceito deveria se aplicar a todas as entidades religiosas. Porém, juridicamente há dois aspectos que não podem ser esquecidos: (i) o acordo internacional foi firmado entre a República Federativa do Brasil e o Estado do Vaticano; e (ii) em termos de igualdade a Jurisprudência nacional, especialmente do Supremo Tribunal Federal entende que não de pode estender benefícios com base no princípio da igualdade, pois se assim o Judiciário agisse, estaria legislando.

Em resumo: há muitos óbices ao reconhecimento deste direito que é posto às entidades Católicas e um risco enorme de perda da imunidade, mesmo que minorado às entidades Católicas, em razão da redação do artigo 15, que prevê as mesmas condições das entidades filantrópicas.

Aí pergunta-se: porquê não a cisão?

A maioria das respostas é que “há anos, décadas, mais de um século… se faz assim…”.

A questão é: a lei mudou e não há direito adquirido a regime tributário.

Assim, em se analisando a questão sob o prisma da aceitação da cisão, cindir-se-iam todas as atividades da instituição religiosa, mantendo-se (no mínimo), duas pessoas jurídicas: uma voltada a atividades passíveis de enquadramento legal, e esta com personalidade jurídica de associação, certificada, imune e reconhecidamente “isenta”, e outra, com personalidade jurídica organização religiosa nos termos do Código Civil, voltada a atividades religiosas de benemerência.

Por óbvio que a cisão de atividades implica cisão de patrimônio, que é possível e justificável, uma vez que o patrimônio da instituição religiosa foi formado durante anos de atividades mistas.

Enfim, neste breve artigo procuramos lançar luz sobre o tema e, especialmente, retirar o ranço e os preconceitos que temos visto nos diversos congressos que participamos e, ainda, deixar claro que não se trata de uma questão na qual não existem limites.